terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O Aparente Milagre

Conta uma tradição chinesa que houve um tempo, durante a época da dinastia Xia (c. 2205-1782 a.C.), em que nosso ambiente cósmico subitamente mudou. Apareceram dez sóis no céu. Os povos da terra sofreram terrivelmente com o calor, e por isso o imperador ordenou que um famoso arqueiro abatesse os sóis extras. O arqueiro foi recompensando com uma pílula que tinha o poder de torná-lo imortal, mas sua esposa a roubou. Por essa ofensa, ela foi exilada na Lua.

Os chineses tinham razão em pensar que um sistema solar com dez sóis não seria amistoso à vida humana. Atualmente sabemos que, embora ofereça grandes oportunidades de bronzeamento, qualquer sistema solar com múltiplos sóis provavelmente nunca permitiria que a vida se desenvolvesse. As razões não são tão simples quanto o calor chamuscante imaginado na lenda chinesa. De fato, um planeta poderia experimentar uma temperatura agradável enquanto orbitasse múltiplos sóis, ao menos por um tempo. Mas o aquecimento uniforme por longos períodos de tempo, uma situação que parece imprescindível para a vida, seria improvável. Para compreender isso, vejamos o que acontece no caso mais simples de um sistema estelar múltiplos, de dois sóis, o chamado sistema binário. Metade de todas as estrelas do céu é membro de sistemas assim. Mas mesmo os sistemas binários simples podem manter apenas certos tipos de órbitas estáveis, como ilustrado abaixo. Em cada órbita dessas, provavelmente haveria um período durante o qual o planeta seria ou quente demais, ou frio demais para sustentar a vida. A situação é ainda pior para sistemas múltiplos.

Órbitas binárias. Planetas orbitando sistemas de estrelas binárias provavelmente terão um clima inóspito, com algumas estações quentes demais para a vida e outras frias demais.


Nosso sistema solar tem outras propriedades “afortunadas”, sem as quais as formas de vida sofisticadas jamais poderiam ter evoluído. Por exemplo, as leis de Newton permitem que as órbitas planetárias sejam círculos ou elipses (uma elipse é um círculo achatado ao longo de uma direção, o eixo menor, e alongado segundo a direção perpendicular, o eixo maior). O grau de achatamento da elipse é descrito pela excentricidade, um número entre zero e um. Uma excentricidade próxima de zero significa que a figura se assemelha a um círculo, enquanto uma excentricidade próxima de um implica uma elipse bem alongada. Kepler ficou transtornado com a ideia de que os planetas não se movem em círculos perfeitos. Mas a órbita terrestre tem uma excentricidade de apenas cerca de dois por cento, e assim aproximadamente circular. Isso acabou sendo um tremendo golpe de sorte.

Excentricidades. A excentricidade é uma medida do quão próxima uma elipse está de um círculo. Órbitas circulares são amistosas à vida, enquanto órbitas muito alongadas resultam em grandes variações sazonais de temperatura.


Os padrões climáticos sazonais da Terra são determinados principalmente pela inclinação do eixo de rotação terrestre em relação ao plano de sua órbita ao redor do Sol. Durante o inverno no hemisfério norte, por exemplo, o polo norte está inclinado para longe do Sol. O fato de que a Terra está mais próxima do Sol nesse momento – apenas 147 milhões de quilômetros, em oposição aos 152 quilômetros do começo de julho – tem um efeito desprezível na temperatura comparada ao efeito de sua inclinação. Mas em planetas com uma maior excentricidade orbital, a distância variável em relação ao Sol desempenha um papel muito mais importante. Mercúrio, por exemplo, com uma excentricidade de vinte por cento, quando está no ponto mais próximo do Sol (periélio) apresenta uma temperatura de mais de 100 graus centígrados acima daquele no ponto mais afastado (afélio). De fato, se a excentricidade da órbita terrestre fosse próxima de um, nossos oceanos ferveriam no periélio e se congelariam quando alcançássemos o afélio, estragando as férias de verão e também as de inverno. Grandes excentricidades orbitais não são propícias à vida, e por isso somos afortunados em ter um planeta com uma excentricidade orbital próxima de zero.

Também temos sorte com a relação entre a massa do nosso sol com a nossa distância dele. Isso porque a massa de uma estrela determina o total de energia que ela emite. As maiores estrelas têm uma massa com cerca de cem massas solares, enquanto as menores são umas cem vezes menos massivas que o Sol. Mesmo assim, dada a distância Terra-Sol, se o nosso sol tivesse apenas vinte por cento mais ou menos massa, a Terra seria mais quente que Vênus, ou mais fria que Marte.

Tradicionalmente, com qualquer estrela, os cientistas definem a zona habitável como uma região estreita em torno da estrela na qual as temperaturas são tais que possa existir água no estado líquido. A zona habitável é às vezes chamada de “zona da Cachinhos Dourados”, porque a condição de que a água esteja no estado líquido, essencial para o desenvolvimento de vida inteligente, exige, como a Cachinhos Dourados, que a temperatura seja a “certa”. A zona habitável no sistema solar, representada a seguir, é diminuta. Felizmente para aqueles de nós que são formas de vida inteligente, a Terra cai dentro dela.

A Zona da Cachinhos Dourados. Se Cachinhos Dourados estivesse experimentando planetas, descobriria que apenas aqueles dentro da zona verde seriam adequados para a vida. A estrela amarela represente nosso próprio Sol. As estrelas mais esbranquiçadas são maiores e mais quentes, as vermelhas, menores e mais frias. Os planetas mais próximos dos seus sóis do que a zona verde são quentes demais para a vida, e os planetas além, frios demais. A extensão da zona habitável é menor para estrelas mais frias.


Newton acreditava que nosso sistema solar estranhamente habitável não havia “surgido do caos pelas meras leis da natureza.” Ao contrário, sustentava que a ordem do universo tinha sido “criada por Deus em primeiro lugar e depois conservada por ele até este dia no mesmo estado e condição”. É fácil compreender por que se pode pensar assim. As muitas ocorrências improváveis que conspiraram para possibilitar a nossa existência, e o projeto do nosso mundo tão amistoso à vida humana seriam realmente enigmáticos se o nosso sistema solar fosse o único habitável no universo. Mas em 1992 veio a primeira observação confirmada de um planeta orbitando outra estrela que não o Sol. Atualmente conhecemos centenas de tais planetas, e não há dúvidas de que há incontáveis outros entre vários bilhões de estrelas do universo. Isso torna as coincidências de nossas condições planetárias – um único sol, a combinação afortunada da distância Terra-Sol e a massa do Sol – muito menos extraordinárias, e menos aceitável a evidência de que a Terra foi cuidadosamente projetada para agradar a nós, seres humanos. Existem todos os tipos de planetas. Alguns – ou pelo menos um – permitem a existência de vida. Obviamente, quando os seres de um planeta que permite a existência de vida examinam o mundo em torno, devem perceber que seu ambiente satisfaz as condições requeridas para que eles existam.

É possível transformar essa última afirmação num princípio científico: nossa própria existência impõe regras determinando de onde e em que momento é possível para nós observarmos o universo. Isto é, a ocorrência do nosso ser restringe as características do tipo de ambiente no qual nos encontramos. Esse princípio é chamado princípio antrópico fraco. (Veremos brevemente o porquê do adjetivo “fraco”.) Um termo melhor que “princípio antrópico” seria “princípio de seleção”, porque o princípio refere-se a como o conhecimento de nossa existência impõe regras que selecionam, entre todos os possíveis ambientes, somente aqueles com as características compatíveis com a vida.

Embora isso possa soar como filosofia, o princípio antrópico fraco pode ser usado para fazer previsões científicas. Por exemplo, qual a idade do universo? Como logo veremos, para existirmos, o universo deve conter elementos como o carbono, que são produzidos cozinhando-se elementos mais leves dentro das estrelas. O carbono deve então ser espalhado pelo espaço através de uma explosão de supernova e, por fim, se condensar como parte de um planeta em um sistema solar de nova geração. Em 1961, o físico Robert Dicke concluiu que o processo leva cerca de dez bilhões de anos, e assim o fato de estarmos aqui implica que o universo deve ter ao menos essa idade. Por outro lado, o universo não pode ser muito mais velho que dez bilhões de anos, já que no futuro todo o combustível para as estrelas terá se esgotado, e necessitamos estrelas quentes para nossa manutenção. Assim, o universo deve ter cerca de dez bilhões de anos de idade. Essa não é uma previsão extremamente precisa, mas é verdadeira – de acordo com dados atuais, o big bang ocorreu há 13,7 bilhões de anos.

Como no caso da idade do universo, previsões antrópicas em geral produzem uma faixa de valores para certos parâmetros físicos em vez de fornecerem um número exato. Isso porque nossa existência, embora não exija um valor particular de um certo parâmetro físico, frequentemente depende de que tais valores não variem muito em relação ao que encontramos para eles. Além disso, esperamos que as condições reais do nosso mundo sejam típicas dentro da faixa antropicamente permitida. Por exemplo, se somente excentricidades orbitais modestas, digamos entre 0 e 0,5, fossem compatíveis com a vida, então uma excentricidade de 0,1 não seria surpreendente, porque uma boa porcentagem de todos os planetas do universo teria órbitas com excentricidades pequenas assim. Mas, se a Terra percorresse um círculo quase perfeito, com excentricidade, digamos, de 0,00000000001, isso faria da Terra um planeta muito especial, e nos motivaria a tentar explicar por que estaríamos vivendo em um lar tão singular. Essa ideia é muitas vezes denominada “princípio da mediocridade”.

As coincidências afortunadas referentes à forma das órbitas planetárias, à massa do sol e assim por diante, são chamadas ambientais, porque surgem do caráter único de nossos arredores e não de um caso feliz das leis fundamentais da natureza. A idade do universo também é um fator ambiental, pois há tempos anteriores e posteriores na história cósmica, mas vivemos nesse tempo porque é a única era que pode conduzir à vida. É fácil de se entender coincidências ambientais, porque o nosso hábitat é apenas um entre vários existentes no universo, e obviamente devemos existir em um habitat que suporte a vida.

O princípio antrópico fraco não é muito controverso. Mas há uma forma mais forte, que defendemos aqui, apesar de ser encarada com desdém por alguns físicos. O princípio antrópico forte sugere que o fato de existirmos impõe restrições não apenas ao nosso ambiente, mas também ás possibilidades de forma e conteúdo das leis naturais. Essa ideia surgiu porque na são somente as características do nosso sistema solar que parecem estranhamente favoráveis ao desenvolvimento da vida humana, mas também as características de todo o universo, o que é muito mais difícil de explicar.

A história de como o universo primordial de hidrogênio, hélio e um pouco de lítio evoluiu para um universo abrigando ao menos um mundo com vida inteligente como nós possui muitos capítulos. Como mencionamos anteriormente, as forças da natureza são tais que os elementos mais pesados – especialmente o carbono – poderiam ser produzidos a partir dos elementos primordiais e permanecerem estáveis por bilhões de anos. Os elementos mais pesados são formados nas fornalhas chamadas estrelas, e assim as forças da natureza teriam primeiro que permitir a formação das estrelas e galáxias. Essas crescem a partir das sementes de minúsculas variações no universo jovem, que era quase completamente uniforme mas que felizmente continha variações de densidade de cerca de uma parte em cem mil. Contudo, a existência das estrelas e, dentro delas, dos elementos dos quais somos feitos não é suficiente. A dinâmica das estrelas tinha que ser tal que algumas por fim explodissem, e mais, explodissem precisamente de tal modo que os elementos mais pesados fossem distribuídos pelo espaço. Além de tudo isso, as leis naturais teriam que impor que esses restos se recondensassem numa nova geração de estrelas, estas por sua vez circundadas por planetas que incorporassem os elementos recém-formados. Do mesmo modo que era imprescindível uma sequência de eventos na Terra para que surgíssemos, também cada elo dessa cadeia cósmica é necessário para nossa existência. Mas, no caso dos eventos provocando a evolução do universo, tal encadeamento é governado pelo balanço das forças fundamentais da natureza, cuja correlação tem que ser exata para que existamos.

Um dos primeiros a reconhecer que isso envolve uma boa dose de acaso foi Fred Hoyle, nos anos 1950. Hoyle acreditava que todos os elementos químicos formaram-se originalmente do hidrogênio, que, para ele, era a verdadeira substância primordial. Hidrogênio é o elemento com núcleo atômico mais simples, consistindo de um próton, isolado ou em combinação com um ou dois nêutrons. (Diferentes formas de hidrogênio, ou de qualquer núcleo, tendo o mesmo número de prótons mas diferentes números de nêutrons são chamados isótopos.) Hoje sabemos que hélio e lítio, átomos cujos núcleos são formados por dois e três prótons, respectivamente, também foram sintetizados primordialmente, em quantidades menores, quando o universo tinha cerca de duzentos segundos de idade. A vida, por outro lado, depende de elementos mais complexos. Destes, o mais importante é o carbono, a base de toda a química orgânica.

Embora se possa imaginar organismos “vivos”, tais como computadores inteligentes, formados por outros elementos como o silício, é duvidoso que a vida possa surgir espontaneamente na ausência de carbono. As razões para isso são técnicas, mas têm a ver com a capacidade única do carbono de formar ligações com outros elementos. Dióxido de carbono, por exemplo, é gasoso à temperatura ambiente e muito útil biologicamente. Como o silício é o elemento diretamente abaixo do carbono na tabela periódica, eles partilham muitas propriedades químicas. O dióxido de silício ou quartzo, contudo, é muito mais útil numa coleção de pedras do que nos pulmões de um organismo. Ainda sim, talvez possam ter evoluído formas de vida que se banqueteiem com silício e agitem suas caudas em lagos de amônia líquida. Mas mesmo esse tipo de vida exótica não poderia ter evoluído apenas dos elementos primordiais, pois estes formam apenas dois compostos estáveis, que são o hidreto de lítio, um sólido cristalino incolor, e o gás hidrogênio, nenhum dos quais é propenso a se reproduzir ou mesmo se apaixonar. Além disso, pesa o fato de que somos formas de vida baseadas no carbono, o que suscita a questão de como o carbono, composto por seis prótons e seis nêutrons, e outros elementos pesados que existem no nosso corpo foram criados.

O primeiro passo ocorre quando estrelas mais velhas começam a acumular hélio, devido à colisão de dois núcleos de hidrogênio que se fundem. Essa fusão gera a energia com a qual nossa estrela (o Sol) nos aquece. Dois átomos de hélio poderiam, por sua vez, colidir para formar um átomo de berílio, cujo núcleo contém quatro prótons. Uma vez que o berílio estivesse formado, ele poderia se fundir com um terceiro núcleo de hélio para formar o carbono. Mas isso não ocorre porque o isótopo de berílio decai quase imediatamente, voltando a ser apenas dois núcleos de hélio.

A situação muda quando uma estrela esgota o hidrogênio em seu núcleo. Nesse momento, a região central colapsa até sua temperatura atingir cerca de cem milhões de graus Kelvin. Sob tais condições, os núcleos colidem mais frequentemente e assim alguns núcleos de berílio colidem com um núcleo de hélio antes de terem a chance de decair. O berílio funde-se com o núcleo de hélio para formar um isótopo de carbono, que é estável. Mas esse carbono ainda está longe de forma os agregados ordenados dos compostos orgânicos do tipo que podem apreciar uma taça de Bordeaux, fazer malabarismos com pinos de boliche flamejantes ou propor questões sobre o universo. Para que seres como os humanos existam, o carbono precisa ser levado do interior da estrela para ambientes mais agradáveis. O que, como dissemos, acontece quando a estrela, no final de seu ciclo de vida, explode como uma supernova, expulsando carbono e outros elementos pesados que se condensam para formar um planeta.


O processo triplo alfa. O carbono é produzido dentro das estrelas pelas colisões de três núcleos de hélio, um evento muito improvável se não fosse por uma propriedade especial das leis da física nuclear.


O processo de criação de carbono é chamado “processo triplo alfa” porque “partícula alfa” é outro nome para o núcleo do isótopo de hélio envolvido, e porque o processo exige que três deles, eventualmente, se fundam entre si. A física habitual prevê uma taxa desprezível de produção de carbono via processo triplo alfa. Essa observação levou Hoyle, em 1952, a prever que a soma das energias de um núcleo de berílio e de um núcleo de hélio deveria ser quase igual à energia de um certo estado quântico do isótopo de carbono formado, uma situação chamada ressonância, o que aumenta bastante a taxa de uma reação nuclear. Naquele tempo não se conhecia tal nível de energia, mas, com base na sugestão de Hoyle, William Fowler, no Caltech, procurou e encontrou o nível de energia proposto por Hoyle, o que representou um grande apoio a seu cenário para a criação de núcleos complexos.

Hoyle escreveu: “Não acredito que nenhum cientista que examinou as evidências deixará de extrair a interferência de que as leis da física nuclear foram deliberadamente projetas em vista das conseqüências que elas produzem no interior das estrelas.” Na época, ninguém tinha conhecimento suficiente da física nuclear para compreender a magnitude do acaso envolvida nessas leis físicas exatas. Mas, durante a investigação da validade do princípio antrópico forte, recentemente os físicos começaram a se perguntar como seria o universo se as leis naturais fossem diferentes. Atualmente, podemos criar simulações computacionais que nos dizem o quanto a taxa do processo triplo alfa depende da intensidade das forças fundamentais da natureza. Tias cálculos mostram que uma mudança tão pequena quanto meio por cento na intensidade da força nuclear forte, ou quatro por cento na da força elétrica, destruiria ou quase todo o carbono, ou quase todo o oxigênio em todas as estrelas e, junto com isso, a possibilidade da vida como a conhecemos. Basta mudar as regras do nosso universo só um pouquinho, e acabam-se as condições para nossa existência!

Ao se examinar os universos-modelo que geramos quando as teorias da física são alteradas de certos modos, pode-se estudar os efeitos das mudanças das leis físicas de uma maneira metódica. Ocorre que não são apenas as intensidades das forças eletromagnética e nuclear forte que são feitas sob medida para nossa existência. A maior parte das constantes fundamentais de nossas teorias parece ter ma sintonia fina, no sentido de que, se fossem alteradas mesmo que de forma modesta, o universo seria significativamente diferente e, em muitos casos, inadequado para o desenvolvimento da vida. Por exemplo, se a outra força, a nuclear fraca, fosse muito mais fraca, no universo primordial todo o hidrogênio do cosmos teria se convertido em hélio, portanto não haveria estrelas normais; mas se fosse muito mias forte, as supernovas não ejetariam sues invólucros externos ao explodirem, e assim não conseguiriam fertilizar o meio interestelar com os elementos pesados exigidos para os planetas promoverem a vida. Se os prótons fossem 0,2 por cento mais pesados, eles decairiam em nêutrons, desestabilizando os átomos. Se as massas dos quarks constituindo um próton fossem alteradas em apenas dez por cento, haveria muito menos núcleos estáveis dos quais somos feitos. De fato, a massa somada dos quarks parece ter sido otimizada para existir o maior número de núcleos estáveis.

Se supusermos que umas poucas centenas de milhões de anos em órbitas estáveis são necessárias para a evolução da vida planetária, o número de dimensões do espaço também é fixado por nossa existência. Isso porque, de acordo com as leis da gravidade, somente com três dimensões espaciais são possíveis órbitas elípticas estáveis. Órbitas circulares são possíveis com outros números de dimensões, mas essas, como Newton temia, são instáveis. Em qualquer universo que não tivesse três dimensões espaciais, mesmo uma pequena perturbação, como aquela produzida pela atração por outros planetas, ejetaria um planeta para fora de sua órbita circular, fazendo-o espiralar para longe ou para dentro do sol, de forma que ou seríamos torrados, ou congelados. Além disso, em mais do que três dimensões, a força gravitacional entre dois corpos decresceria mais rapidamente do que no caso tridimensional. Em três dimensões, a força gravitacional cai a um quarto do seu valor quando a distância é dobrada. Em quatro dimensões, cairia a um oitavo; em cinco, a 1/16, e assim por diante. Como consequência, com mais de três dimensões, o Sol não poderia existir de maneira estável, com sua pressão interna contrabalançando a atração gravitacional. Ou ele desintegraria, ou entraria num colapso e formaria um buraco negro, em ambos os casos acabando com a nossa alegria. Nas escalas atômicas, as forças elétricas se comportariam do mesmo modo que as forças gravitacionais. Ou seja, os elétrons dos átomos ou escapariam dele, ou espiralariam para o núcleo.

A emergência de estruturas complexas, capazes de sustentar observadores inteligentes, parece ser muito frágil. As leis da natureza formam um sistema com extrema sintonia fina, e muito pouco pode ser alterado nas leis físicas sem destruir a possibilidade de desenvolvimento da vida como a conhecemos. Não fosse por uma série de coincidências espantosas dos detalhes precisos das leis físicas, parece que nós, humanos e formas de vida semelhantes, jamais teríamos aparecido.

A coincidência de sintonia fina mais impressionante envolve a chamada constante cosmológica das equações da relatividade geral de Einstein. Como já dissemos, em 1915, quando formulou a teoria, Einstein acreditava que o universo era estático, isto é, nem em expansão, nem em contração. Uma vez que toda matéria atrai a outra, ele introduziu em sua teoria uma nova força antigravidade para combater a tendência do universo de se colapsar sobre si mesmo. Essa força, diferentemente das outras, não provinha de qualquer fonte particular, mas estava embutida no tecido do espaço-tempo. A constante cosmológica descrevia a intensidade dessa força.

Quando se descobriu que o universo não era estático, Einstein eliminou a constante cosmológica de sua teoria e disse que sua inclusão tinha sido a maior gafe da sua vida. Mas, em 1998, observações de supernovas muito distantes revelaram que o universo está expandindo-se numa taxa acelerada, um efeito que somente seria possível se algum tipo de força repulsiva estivesse em ação por todo o espaço. A constante cosmológica foi ressuscitada. Já que agora sabemos que ela não é nula, resta indagar por que ela possui o valor que observamos. Os físicos criaram argumentos explicando como ela poderia ter surgido devido a efeitos mecânicos quânticos, mas o valor calculado tem cerca de 120 ordens de magnitude (1 seguido de 120 zeros), ou seja, é maior do que o valor obtido pelas observações de supernovas. O que quer dizer que ou o raciocínio empregado no cálculo está errado, ou existe algum outro efeito que anule tudo como se por um milagre, exceto uma fração inimaginavelmente pequena do número calculado. É certo que, se o valor da constante cosmológica fosse muito maior do que é, o nosso universo teria explodido muito antes das galáxias serem formadas e – novamente – a vida que conhecemos seria impossível.

O que podemos deduzir dessas coincidências? Sorte na forma e natureza precisas das leis físicas fundamentais é um espécie distinta da sorte encontrada nos fatores ambientais. Não pode ser explicada tão facilmente e tem implicações físicas e filosóficas muito mais profundas. Nosso universo e suas leis parecem seguir um projeto feito sob medida e que, se for para realmente existirmos, deixa pouca margem para alterações. Isso não é simples de explicar e suscita a questão natural de por que é desse modo.

Muitos gostariam que usássemos essas coincidências como uma evidência da ação de Deus. A ideia de que o universo foi planejado para acomodar a humanidade aparece em teologias e mitologias datando de milhares de anos atrás até o presente. Nas narrativas mítico-históricas do Popol Vuh maia, os deuses proclamam: “Não receberemos nem a glória, nem a honra de tudo o que criamos e formamos até eu existam os seres humanos, dotados de consciência.” Um típico texto egípcio de cerca de 2000 a.C. afirma: “Os homens, o gado de Deus, foram bem-assistidos. Ele [o deus-Sol] fez o céu e a terra em seu benefício.” O filósofo taoista chinês Lieh Yü K’ou (c. 400 a.C.) exprimia a mesma ideia numa história, onde um personagem diz: “O céu fez crescer os cinco tipos de grãos, e deu à luz as tribos písceas e emplumadas especialmente em seu benefício.”

Na cultura ocidental, o Velho Testamento avaliza a ideia de destino providencial em sua história da criação, mas o ponto de vista tradicional cristão foi profundamente influenciado por Aristóteles, que acreditava “em um mundo natural inteligente que funciona conforme algum propósito deliberado”. O teólogo cristão medieval Tomás de Aquino empregou as ideias de Aristóteles sobre a ordem da natureza para demonstrar a existência de Deus. No século XVIII, outro teólogo cristão chegou ao ponto de dizer que os coelhos têm rabos brancos para que nos seja mais fácil caçá-los. Devemos ao cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, uma ilustração mais moderna da visão cristã, quando afirmou alguns anos atrás: “Agora, no início do século XXI, confrontada com alegações científicas como o neodarwinismo e a hipótese do multiverso da cosmologia, inventadas para evitar as esmagadoras evidências em favor do propósito e desígnio encontradas na ciência moderna, a Igreja Católica volta a defender a natureza humana, proclamando que o desígnio imanente na natureza é real.” Em cosmologia, a evidência esmagadora em favor do propósito e desígnio, à qual o cardeal se referia, é a sintonia fina das leis naturais descritas acima.

O momento decisivo na rejeição científica do universo antropocêntrico foi o modelo copernicano do sistema solar, no qual a Terra não mais ocupava uma posição central. Ironicamente, a visão de mundo do próprio Copérnico era antropomórfica, como denunciado ao tentar no confortar assinalando que, apesar do seu modelo heliocêntrico, a Terra estava localizada quase no centro do universo: “Embora [a Terra] não esteja no centro do mundo, todavia sua distância [àquele centro] é insignificante quando comparada, em particular, à distância das estrelas fixas.” Com a invenção do telescópio, as observações no século XVII, como o fato de o nosso planeta não ser o único orbitado por uma lua, deram peso ao princípio de que não ocupamos uma posição privilegiada no universo. Nos séculos posteriores, quanto mais se descobria sobre o universo, mais parecia que o nosso planeta provavelmente era apenas uma variedade de planeta-jardim. Mas a recente descoberta de que tantas leis naturais têm uma extrema sintonia fina pode levar ao menos alguns de nós de volta à velha ideia de que este grande projeto é obra de algum grande projetista. Nos Estados Unidos, devido à constituição proibir o ensino religioso nas escolas, esse tipo de ideias é chamado de projeto inteligente, como o entendimento não declarado, mas implícito, de que o projetista é Deus.

Essa não é a reposta da ciência moderna. Vimos no 5º artigo que nosso universo é um entre muitos, cada qual com diferentes leis. O multiverso não é uma noção inventada para explicar o milagre da sintonia fina. É uma consequência da condição sem-contorno, assim como muitas outras teorias da cosmologia moderna. Mas, se isso for verdadeiro, então o princípio antrópico forte pode ser considerado efetivamente equivalente ao fraco, colocando a sintonia fina das leis físicas no mesmo pé que os fatores ambientais, pois isso implica que nosso hábitat cósmico – agora todo o universo observável – é apenas um entre muitos, do mesmo modo que nosso sistema solar é um entre muitos. Portanto, assim como as coincidências ambientais do nosso sistema solar tornam-se pouco notáveis ao se perceber que existem bilhões de tais sistemas, as sintonias finas das leis naturais podem ser explicas pela existência de uma pluralidade de universos. Ao longo dos séculos, muitos atribuíam a Deus a beleza e a complexidade da natureza, que, na sua época, pareciam não ter explicações científicas. Mas, exatamente do mesmo modo que Darwin e Wallace explicaram como o projeto aparentemente miraculoso das formas de vida poderia surgir sem intervenção de um ser supremo, o conceito de multiverso pode explicar a sintonia fina das leis físicas sem a necessidade de um criador benevolente que fez o universo em nosso benefício.

Einstein certa vez colocou ao seu assistente Ernst Straus a questão: “Deus teve alguma escolha quando criou o universo?” No final do século XVI, Kepler estava convencido de que Deus criou o universo de acordo com algum princípio matemático perfeito. Newton demonstrou que as mesmas leis que se aplicam ao céu também se aplica à Terra, e desenvolveu equações matemáticas para exprimir essas leis, equações tão elegantes que geraram um fervor quase religioso entre muitos cientistas do século XVIII, que aparentemente pretendiam usá-las para mostrar que Deus é um matemático.

Desde Newton e, principalmente, desde Einstein, o objetivo da física tem sido descobrir princípios matemáticos simples, do tipo imaginado por Kepler, e com eles criar uma teoria unificada de tudo, dando conta de todos os detalhes da matéria e das forças observadas na natureza. No final do século XIX e início do século XX, Maxwell e Einstein unificaram as teorias da eletricidade, magnetismo e luz. Nos anos 1970, criou-se o modelo padrão, uma teoria única das forças eletromagnética, nuclear fraca e nuclear forte. A teoria das cordas e a teoria-M então surgiram numa tentativa de incluir a força restante, a gravidade. Desejava-se encontrar não apenas uma teoria única que explicasse todas as forças, mas também que deduzisse os números fundamentais aqui mencionados, tais como a intensidade das forças e as massas e cargas das partículas elementares. Como Einstein observou, a esperança era sermos capazes de dizer que “a natureza é de tal modo constituída que é possível estabelecer logicamente leis tão bem-determinadas que dentro delas ocorressem constantes completamente determinadas apenas de forma racional (não constantes, portanto, cujos valores podem ser alterados sem destruir a teoria)”. Seria improvável que uma teoria única apresente a sintonia fina que permite a nossa existência. Mas, se à luz de avanços recentes, interpretarmos o sonho de Einstein como aquele de uma teoria única que explica este e todos os universos, com todo o seu espectro de diferentes leis, então a teoria-M poderia ser a teoria procurada. Mas seria a teoria-M única, ou imposta por algum princípio lógico simples? Será que podemos responder à questão: Por que a teoria-M?



1º Artigo: O Mistério do Ser
2º Artigo: O Domínio da Lei
3º Artigo: O Que é a Realidade?
5º Artigo: A Teoria de Tudo
6º Artigo: Escolhendo Nosso Universo




Referência: Readaptação de The Grand Design de Leonard Mlodinow e Stephen Hawking

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