quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Histórias Alternativas

Em 1999, uma equipe de físicos da Áustria disparou várias moléculas em forma de bola de futebol contra uma barreira. Essas moléculas, cada uma formada por sessenta átomos de carbono, são chamadas de buckminsterfulerenos ou fulerenos em homenagem ao arquiteto Buckminster Fuller, famoso por suas construções nesse formato. Os domos geodésicos de Fuller são provavelmente os maiores objetos em forma de bolas de futebol que existem. Os fulerenos são os menores. A barreira usada pelos cientistas como alvo tinha duas fendas através das quais os fulerenos poderiam passar. Por trás da parede, os físicos colocaram o equivalente de uma tela para detectar e contar os fulerenos.

Fulerenos. Os fulerenos são como microscópicas bolas de futebol feitas de átomos de carbono.

Se fôssemos montar um experimento análogo com bolas de futebol de verdade, precisaríamos de um jogador com uma mira meio ruim, mas que chutasse as bolas com uma velocidade constante à nossa escolha. Posicionaríamos esse jogador diante de uma parede com dois vãos. Do outro lado da parede estaria uma rede bem larga. A maior parte das bolas chutadas bateria na parede e voltaria, mas algumas atravessariam um dos vão e cairiam na rede. Se os vãos fossem apenas ligeiramente maiores do que as bolas, dois grupos altamente colimados emergiriam do outro lado. Se os vãos fossem um pouco mais largos, cada feixe se abriria um pouco, como mostra a figura abaixo.

Jogador de duas fendas. Um jogador de futebol chutando bolas contra fendas numa parede deveria produzir um padrão óbvio.

Note que, se fecharmos um dos vãos, o grupo correspondente de bolas não mais passará pela barreira, mas isso não comprometeria o outro grupo. Se reabrirmos o segundo vão, apenas aumentaremos o número de bolas que atingem um dado ponto do outro lado, pois teríamos todas as bolas que passaram pelo vão que permaneceu aberto, mais as bolas procedentes do segundo vão. Em outras palavras, o que observamos com ambos os vãos desimpedidos é a soma do que observamos individualmente em cada vão da parede aberto. Essa é a qual estamos acostumado no dia a dia, mas não o que os pesquisadores austríacos encontraram quando dispararam os fulerenos.

No experimento austríaco, ao abrir a segunda fenda, a quantidade de fulerenos a bater na rede realmente aumentou em alguns pontos, porém decresceu em outros, como mostra a figura abaixo. De fato, havia locais que não foram atingidos por nenhum fulereno quando ambas as fendas foram abertas, mas que haviam sido atingidos quando somente uma das fendas estava aberta. Tudo isto parece muito inusitado. Como pode a abertura de uma segunda fenda resultar em menos moléculas chegando em certos pontos?

Jogador de fulerenos. Quando bolas de futebol moleculares são disparadas contra fendas em um anteparo, o padrão resultante reflete leis quânticas incomuns.

Podemos conseguir uma pista para a resposta ao examinar os detalhes do experimento. Um grande número de bolas moleculares atinge o ponto médio entre os dois locais onde esperaríamos que elas chegassem se as bolas passassem por uma fenda ou pela outra. Um pouco mais afastadas da posição central, chegavam muito poucas moléculas, mas, ainda um pouco mais afastadas, havia novamente um aumento no número de moléculas. Este padrão não é a soma dos padrões formados quando cada fenda é aberta separadamente, mas pode-se reconhecer o padrão de interferência característico de ondas, como visto no 3º artigo. As áreas onde não chegam moléculas correspondem a regiões nas quais as ondas emitidas pelas duas fendas estão fora de fase e geram interferência destrutiva; as áreas onde chegam muitas moléculas correspondem a regiões onde as ondas chegam em fase, e portanto, à interferência construtiva.

Nos primeiros dois mil anos do pensamento científico, a experiência quotidiana e a intuição eram as bases das explicações teóricas. O desenvolvimento da tecnologia expandiu o domínio de fenômenos que podemos observar, e então encontramos comportamentos da natureza cada vez mais díspares em relação ao senso comum e à nossa intuição, como ficou evidente com o experimento dos fulerenos. Esse experimento é típico dos fenômenos que não podem ser abarcados pela ciência clássica, mas descritos pela chamada física quântica. De fato, Feynman escreveu que o experimento da dupla fenda, como acima descrito, “contém todo o mistério da mecânica quântica”.

Os princípios da física quântica foram elaborados nas primeiras décadas do século XX, após a teoria newtoniana mostrar-se inadequada para descrever a natureza nos níveis atômicos ou subatômicos. As teorias fundamentais da física descrevem as forças da natureza e como os objetos reagem a elas. Teorias clássicas, como a de Newton, são construídas dentro de um quadro derivado da experiência diária, no qual objetos materiais têm uma existência independente, podem ser localizados em posições definidas, seguem cursos definidos e assim por diante. A física quântica fornece um quadro para compreender como a natureza opera em escalas atômicas e subatômicas, mas, como veremos mais tarde, impõe um esquema conceitual inteiramente diferente, no qual um objeto não tem uma posição, trajetória e mesmo passado e futuro precisamente determinados. As teorias quânticas de forças como a gravidade e a força eletromagnética são construídas dentro deste corpo conceitual.

Mas poderiam teorias construídas dentro de um quadro tão alheio à experiência diária também explicar esses eventos da experiência comum, reproduzidos tão precisamente pelos modelos da física clássica? Sim, elas podem, pois nós e tudo o que nos cerca é composto de um número inimaginavelmente grande de átomos, em número maior do que o das estrelas do universo observável. E, embora os átomos obedeçam aos princípios da física quântica, pode-se mostrar que os grandes conjuntos que eles formam – bolas de futebol, nabos, aviões a jato e nós mesmos – conseguem, de fato, evitar a difração através de fendas. Assim, mesmo que os componentes dos objetos comuns obedeçam à física quântica, as leis de Newton constituem uma teoria efetiva que descreve de um modo muito acurado o comportamento dessas estruturas compostas que formam nosso mundo quotidiano.

Isso pode parecer estranho, mas há situações na ciência onde um grande conjunto parece comportar-se de um modo distinto daquele que seus componentes individuais. As respostas de um único neurônio dificilmente são iguais às do cérebro humano, assim como as propriedades de uma molécula de água não preveem o comportamento de um lago. No caso da física quântica, os físicos ainda estão tentando entender os detalhes de como as leis de Newton emergem do domínio quântico. O que sabemos é que os componentes de todos os objetos obedecem às leis da física quântica, e que as leis newtonianas são uma boa aproximação para descrever o comportamento dos objetos macroscópicos compostos por esses componentes quânticos.

As previsões da teoria newtoniana, portanto, casam-se bem com a visão da realidade que desenvolvemos a partir da experiência com o mundo à nossa volta. Mas átomos e moléculas individuais operam de um modo totalmente distinto da nossa experiência quotidiana. A física quântica é um novo modelo da realidade, que fornece uma imagem do universo na qual muitos conceitos fundamentais para nossa apreensão intuitiva da realidade não têm mais significado.

Em 1927, Clinton Davisson e Lester Germer, físicos experimentais da Bell Laboratories, realizaram o experimento da dupla fenda pela primeira vez, mas com elétrons – objetos muitos mais simples que buckminsterfulerenos – interagindo com um cristal de níquel. O fato de que partículas de matéria como elétrons comportam-se como ondas na água foi o tipo de experimento espantoso que inspirou a física quântica. Visto que esse comportamento não é observado em uma escala macroscópica, os cientistas por muito tempo se perguntaram quão grande e complexo pode ser um objeto e ainda exibir propriedades ondulatórias. Seria realmente sensacional se este efeito pudesse ser demonstrado em pessoas ou hipopótamos, mas, como dissemos, em geral quanto maior o objeto, menos aparentes e robustos são os efeitos quânticos. Assim, é improvável que os animais de um zoológico possam passar como ondas por entre as barras de suas jaulas. Apesar disso, os físicos experimentais têm observado o fenômeno ondulatório em partículas com tamanho cada vez maior. Os cientistas esperam, um dia, duplicar o experimento dos fulerenos com um vírus, que não só é muito maior, mas também é considerado por alguns como um ser vivo.

Somente são necessários uns poucos aspectos da física quântica para compreender os argumentos que empregaremos nos artigos a seguir. Um dos elementos-chave é a dualidade onda-partícula. Que partículas materiais comportam-se como ondas surpreendeu a todos. Que a luz se comporta como onda não surpreende mais ninguém. O comportamento ondulatório da luz parece natural e foi considerado um fato concreto por quase dois séculos. Se incidirmos um feixe de luz nas duas fendas do experimento anterior, duas ondas emergirão e se encontrarão na tela. Em alguns pontos, suas cristas ou vales coincidirão formarão áreas brilhantes; em outros, a crista de uma onda encontrará o vale de outra, anulando-se entre si e resultando em áreas escuras. O físico inglês Thomas Young realizou esse experimento no início do século XIX, convencendo as pessoas de que a luz é uma onda e não, como Newton acreditava, composta por partículas.

Experimento de Young. O padrão dos fulerenos era familiar dentro da teoria ondulatória da luz.

Embora se possa concluir que Newton estava errado ao dizer que a luz não é uma onda, ele estava correto quando dizia que a luz pode agir como se fosse composta por partículas, atualmente chamadas de fótons. Assim, como somos compostos por um grande número de átomos, a luz que vemos no dia a dia é composta por um número enorme de fótons – mesmo uma luz noturna de um watt emite bilhões de bilhões de fótons por segundo. Fótons individuais em geral não são evidentes, mas em laboratório podemos produzir um feixe de luz tão fraco que consiste de uma corrente de fótons separados, que podem ser detectados como indivíduos do mesmo modo que detectamos elétrons e fulerenos individuais. E podemos repetir o experimento de Young utilizando um feixe tão esparso que os fótons atingem a barreira um de cada vez, com alguns segundos entre cada chegada. Se fizermos isso, e somarmos todos os impactos registrados na tela do outro lado da barreira, perceberemos que juntos eles formam o mesmo padrão de interferência que surgiria se realizássemos o experimento de Davisson-Germer, disparando os elétrons (ou os fulerenos) um a um contra a tela. Para os físicos, esta é uma revelação espantosa: se partículas individuais interferem umas nas outras, então a natureza ondulatória da luz não é apenas uma propriedade de um feixe ou de uma grande coleção de fótons, mas das partículas individuais.

“Se isso está correto, então tudo o que pensávamos ser uma onda é na verdade uma partícula, e tudo o que pensávamos ser uma partícula é na verdade uma onda.”

Outro fundamento central da física quântica é o princípio da incerteza, formulada por Werner Heisenberg em 1926. O princípio da incerteza diz que há limites à nossa capacidade de medir simultaneamente certos dados, tais como a posição e a velocidade de uma partícula. De acordo com o princípio da incerteza, por exemplo, ao se multiplicar a incerteza na posição de uma partícula pela incerteza do seu momento (que é o produto da massa pela velocidade), o resultado nunca poderá ser menor do que uma certa quantidade fixa, chamada constante de Planck. Essa definição parece um trava-língua, mas sua essência pode ser expressa de um mondo simples: quanto mais precisamente se mede a velocidade, menos precisamente se mede a posição, e vice-versa. Por exemplo, se a incerteza da posição for reduzida pela metade, a incerteza da velocidade será dobrada. É importante notar que, comparada às unidades de medida do quotidiano (metros, segundos e quilogramas), a constante de Planck tem um valor extremamente pequeno: 6/10.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000. Em consequência, se localizarmos muito bem um objeto macroscópico, como uma bola de futebol, com uma massa de um terço de um quilograma, dentro de um milímetro em qualquer direção, ainda assim podemos medir sua velocidade com uma precisão muito maior que um bilionésimo de um bilionésimo de um bilionésimo de quilômetro por hora. Isso porque, medida nessas unidades, a bola de futebol tem uma massa de um terço, e a incerteza na sua posição é de um milésimo. Nenhum desses números dá conta de todos os zeros na constante de Planck, e assim o seu valor diminuto recai na incerteza da velocidade. Mas, nas mesmas unidades, um elétron tem uma massa de cerca de 1/1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000, e assim a situação se torna inteiramente diferente. Se medirmos a posição de um elétron com uma precisão próxima ao diâmetro de um átomo, o princípio da incerteza diz que não podemos saber a velocidade do elétron mais acuradamente do que cerca de mais ou menos mil quilômetros por segundo, o que não é lá muito preciso.

De acordo com a física quântica, não importa quanta informação possamos obter ou quão poderosas sejam nossas capacidade computacionais, os resultados de processos físicos não podem ser previstos com certeza porque não podem ser determinados com certeza. Em vez disso, dado o estado inicial de um sistema, a natureza determina seu estado futuro através de um processo que é fundamentalmente incerto. Em outras palavras, a natureza não impõe o resultado de qualquer processo ou experimento, mesmo nas situações mais simples. Mias precisamente, ela permite um número de diferentes eventualidades, cada uma com uma certa probabilidade de ser realizada. Tudo se passa, parafraseando Einstein, como se Deus jogasse dados antes de decidir o resultado de todos os processos físicos. Essa ideia incomodava Einstein, e assim, mesmo tendo sido um dos pai da física quântica, mais tarde tornou-se um crítico dela.

A física quântica poderia abalar a ideia de que a natureza é governada por leis, mas não é esse o caso. Antes, ela nos leva a aceitar uma nova forma de determinismo: dado o estado de um sistema em um certo instante, as leis naturais determinam as probabilidades de vários futuros e passados possíveis em vez de determinar o futuro e o passado com certeza. Embora isso não seja muito agradável para alguns, os cientistas devem aceitar teorias que concordem com os experimentos e não com suas próprias noções pré-concebidas.

O que a ciência exige de uma teoria é que ela seja testável. Se a natureza probabilística das previsões da física quântica implica a impossibilidade de confirmar essas previsões, então as teorias não se qualificariam como válidas. Mas, apesar da natureza probabilística de suas previsões, ainda assim podemos testar as teorias quânticas. Por exemplo, podemos repetir um experimento muitas vezes e confirmar se a frequência dos vários resultados está em conformidade com as probabilidades previstas. Considere o experimento dos fulerenos. A física quântica diz que nada jamais é localizado em um ponto definido porque, se o fosse, a incerteza quanto ao momento seria infinita. De fato, segundo a física quântica, cada partícula tem alguma probabilidade de ser encontrada em qualquer local do universo. Assim, mesmo se as chances de ser achar um dado elétron dentro do aparato da fenda dupla fossem muito altas, há sempre alguma chance de que ele possa ser encontrado do outro lado da estrela Alfa do Centauro, ou na torta da lanchonete do seu trabalho. Consequentemente, se você chutar para longe um fulereno quântico, nem toda a capacidade do conhecimento do mundo permitirá a você dizer de antemão exatamente onde ele vai cair. Mas, se você repetir esse experimento muitas vezes, os dados obtidos refletirão a probabilidade de se encontrar a bola em várias localizações, e os experimentadores têm confirmado que os resultados de tais experimentos concordam com as previsões da teoria.

É importante perceber que probabilidades em física quântica não são como aquelas da física newtoniana e do quotidiano. Esse ponto pode ser compreendido comparando-se o padrão produzido por um feixe contínuo de fulerenos disparados contra uma tela ao padrão dos furos produzido por jogadores atirando dardos mirando no alvo. A não ser que os jogadores tenham tomado cerveja demais, as chances de um dardo cair próximo do centro são as maiores, diminuindo à medida que o jogador se afaste. Assim, como com os fulerenos, qualquer dardo pode cair em qualquer lugar, e com o tempo surgirá um padrão de furos que reflete as probabilidades subjacentes. Na vida diária, poderíamos descrever essa situação dizendo que um dardo tem uma certa probabilidade de cair em vários pontos, mas se dissermos isso, diferentemente dos fulerenos, é somente porque nosso conhecimento das condições do arremesso é incompleto. Poderíamos aperfeiçoar nossa descrição se soubéssemos exatamente o modo como o jogador lança o dardo, seu ângulo, seu giro, velocidade etc. Então, a princípio poderíamos prever onde o dardo cairia com uma precisão tão grande quanto desejássemos. Nosso uso de termos probabilísticos para descrever o produto de eventos do quotidiano reflete, portanto, não a natureza intrínseca do processo, mas apenas nossa ignorância sobre certos aspectos dele.

As probabilidades nas teorias quânticas são diferentes. Elas refletem uma aleatoriedade fundamental na natureza. O modelo quântico da natureza incorpora princípios que contradizem não só nossa experiência diária, mas também nossa concepção intuitiva da realidade. Aqueles que acham esses princípios bizarros ou difíceis de se acreditar estão em boa companhia, junto com grandes físicos como Einstein e mesmo Feynman, cuja descrição da teoria quântica apresentaremos em breve. De fato, Feynman escreveu certa vez: “Creio que posso dizer com segurança que ninguém entende a mecânica quântica.” Mas a física quântica concorda com a observação. Ela nunca falhou em um teste, e foi a mais testada do que qualquer outra teoria da ciência.

Na década de 1940, Richard Feynman teve um assombroso insight sobre a diferença entre o mundo quântico e o newtoniano. Feynman estava intrigado pela questão de como surgia o padrão de interferência no experimento de dupla fenda. Lembre-se que o padrão encontrado quando se lançam moléculas com ambas as fendas abertas não é a soma dos padrões encontrados quando se realiza o experimento duas vezes, uma com apenas uma fenda aberta, e outra com apenas a outra aberta. Em vez disso, quando ambas as fendas estão abertas, surge uma série de faixas claras e escuras, as últimas correspondendo a regiões onde não caíram partículas. Isso quer dizer que as partículas que teriam atingido a área escura, se a fenda número um, digamos, estivesse aberta, não o fizeram quando a fenda número dois também estava aberta. É como se, durante seus trajetos da fonte à tela, as partículas adquirissem informação sobre ambas as fendas. Esse tipo de comportamento é drasticamente distinto daquele que as coisas parecem ter no quotidiano, no qual uma bola teria uma trajetória ao passar por uma das fendas e não seria afetada pela situação da outra.

De acordo com a física newtoniana – e com o modo como o experimento funcionaria se o fizéssemos com bolas de futebol em vez de com moléculas -, cada partícula segue uma rota bem-definida de sua fonte à tela. Não há lugar nesse cenário para um desvio no qual a partícula visitaria a vizinhança de cada fenda ao longo do caminho. O modelo quântico, contudo, diz que a partícula não tem uma posição definida durante o tempo que se encontra entre o ponto inicial e o final. Feynman percebeu que isso não significa dizer que as partículas não têm trajetórias durante sua jornada entre a fonte e a tela. Antes, isso pode significar que as partículas percorrem todas as trajetórias possíveis conectando esses dois pontos. É isso, afirma Feynman, que torna a física quântica distinta da física newtoniana. A situação das duas fendas realmente importa porque, em vez de seguir uma única trajetória definida, as partículas percorrem todas as trajetórias, e o fazem simultaneamente! Isso soa como ficção científica, mas não é. Feynman formulou uma expressão matemática, a soma sobre as histórias de Feynman, que reflete essa ideia e reproduz todas as leis da física quântica. Na teoria de Feynman, a matemática e o quadro físico são diferentes da formulação original da física quântica, mas as previsões são as mesmas.

No experimento de dupla fenda, as ideias de Feynman implicam que as partículas percorrem trajetórias que passam por apenas uma fenda ou apenas pela outra; trajetórias que se enfiam pela primeira fenda, voltam pela segunda e passam de novo pela primeira; trajetórias que vão ao restaurante que serve um magnífico camarão ao Cury e depois dão a volta em Júpiter algumas vezes antes de voltar para casa; e mesmo trajetórias que cruzam o universo e voltam. É desse modo, na visão de Feynman, que a partícula adquire a informação sobre quais fendas estão abertas – se uma fenda está aberta, a partícula segue as trajetórias através dela. Quando ambas as fendas estão abertas, as trajetórias nas quais a partícula passa por uma fenda colidem com aquelas nas quais ela passa pela outra, causando a interferência. Isso pode parecer loucura, mas, para os propósitos da maior parte da física fundamental feita hoje – e para os propósitos desta temporada do blog - a formulação de Feynman revelou-se mais útil do que a original.

Trajetórias de partículas. A formulação de Feynman da teoria quântica fornece um quadro que explica por que partículas como fulerenos e elétrons formam padrões de interferência quando são lançadas através de fendas em um anteparo.

Como a visão de Feynman da realidade quântica é crucial para se compreender as teorias que apresentarei em breve, vale a pena nos determos um pouco para nos familiarizarmos com seu funcionamento. Imagine um processo simples no qual uma partícula move-se livremente partindo de uma posição A. No modelo newtoniano, essa partícula seguirá uma linha reta. Depois de um intervalo de tempo específico, encontraremos a partícula em uma posição precisa B. No modelo de Feynman uma partícula quântica percorre todas as trajetórias conectando A e B, coletando um número, denominado fase, para cada trajetória. Essa fase representa a localização no ciclo de uma onda, ou seja, se a onda está em uma crista, em um vale ou em um ponto intermediário. A receita matemática de Feynman para calcular essa fase mostrou que, quando se somam as ondas de todas as trajetórias, obtém-se a “amplitude de probabilidade” de que a partícula, partindo de A, chegue em B. O quadrado da amplitude de probabilidade dá então a probabilidade correta de que a partícula atinja B.

Somando trajetórias de Feynman. Os efeitos devidos a diferentes trajetórias de Feynman podem se intensificar ou se atenuar do mesmo modo como acontece com as ondas. As flechas amarelas representam as fases a serem somadas. As linhas azuis representam sua soma, uma linha do começo da primeira flecha à ponta da última. Na imagem de baixo, as flechas apontam em diferentes direções, e assim sua soma, a linha azul, é bem curta.

A fase que cada partícula individual contribui à soma de Feynman (e assim à probabilidade de ir de A para B) pode ser visualizada como uma flecha de comprimento fixo, mas que pode apontar para qualquer direção. Para se adicionar duas fases, posiciona-se a flecha representando uma fase no final daquela representando a outra; a nova flecha resultante representa a soma. Para se adicionar mais fases, basta repetir o processo. Note que, quando as fases se alinham, a flecha representando o total pode ser bastante longa. Mas se elas apontam em diferentes direções, tendem a se anular na soma, e a flecha resultante será curta. A ideia é ilustrada nas figuras acima.

Para completar a prescrição de Feynman para o cálculo da amplitude de probabilidade de que uma partícula, partindo da localização A, termine na localização B, adicionam-se as fases, ou flechas, associadas com todas as trajetórias conectando A e B. Há um número infinito de trajetórias, o que torna a matemática um tanto complicada, mas isso funciona. Algumas das trajetórias são ilustradas abaixo.

As trajetórias de A para B. A trajetória “clássica” entre dois pontos é uma linha reta. As fases das trajetórias próximas da trajetória clássica tendem a se intensificar, enquanto as fases das trajetórias distantes tendem a se anular.

A teoria de Feynman ilustra com especial clareza como um cenário de mundo newtoniano pode emergir da física quântica. Segundo a teoria de Feynman, as fases associadas a cada trajetória dependem da constante de Planck. Porque a constante de Planck é tão pequena, a teoria impõe que, quando se adiciona a contribuição de trajetórias próximas entre si, as fases normalmente exibem uma extrema variabilidade, e, como na figura acima, tendem a produzir zero como soma. Mas a teoria também mostra que há certas trajetórias para as quais as fases têm uma tendência se alinhar, e assim essas trajetórias são favorecidas; isto é, elas contribuem mais para o comportamento observado da partícula. Ocorre que, para grandes objetos, trajetórias muito semelhantes àquelas previstas por Newton têm fases similares e se acrescentam para dar, sem dúvidas, a maior contribuição à soma. Assim, o único destino com uma probabilidade efetivamente maior do que zero é o previsto pela teoria newtoniana, e esse destino tem uma probabilidade de aproximadamente um. Desta forma, grandes objetos movem-se exatamente como previsto pela teoria newtoniana.

Até agora discutimos as ideias de Feynman no contexto do experimento da dupla fenda, no qual partículas são lançadas contra uma parede com fendas e medimos a localização, numa tela atrás da parede, onde as partículas caíram. De um modo mais geral, em vez de apenas uma única partícula, a teoria de Feynman permite prever os resultados prováveis de um “sistema”, que poderia ser uma partícula, um conjunto de partículas ou mesmo todo o universo. Entre o estado inicial do sistema e a posterior mensuração de suas propriedades, estas evoluem de um certo modo, que os físicos chamam de história do sistema. No experimento de dupla fenda, por exemplo, a história da partícula é simplesmente sua trajetória. Do mesmo modo que, para esse experimento, a chance de se observar a partícula cair em um dado ponto depende de todas as trajetórias que poderiam levá-la até lá, Feynman demonstrou que, para um sistema geral, a probabilidade de qualquer observação é construída a partir de todas as histórias que poderiam ter levado àquela observação. Devido a isso, esse método é denominado de “soma sobre as histórias” ou de “histórias alternativas” da física quântica.

Agora que temos alguma familiaridade com a abordagem de Feynman à física quântica, podemos examinar outro princípio quântico central, que utilizaremos posteriormente – o princípio de que a observação de um sistema deve alterar o seu curso. Será que não podemos, como quando nosso orientador tem uma mancha de mostarda no queixo, olhar discretamente e não interferir? Negativo. Conforme a física quântica, não podemos “apenas” observar algo. Isto é, a física quântica reconhece que para fazer uma observação devemos interagir com o objeto que estamos observando. Por exemplo, para observar um objeto no sentido tradicional, devemos iluminá-lo com uma luz. Iluminar uma abóbora com uma luz terá pouco efeito sobre ela. Porém, iluminar uma diminuta partícula quântica com uma luz – isto é, disparar fótons contra ela -, por mais fraca que seja, tem efeitos apreciáveis, e os experimentos mostram que isso altera os resultados experimentais exatamente do como descrito pela física quântica.

Suponha que, como anteriormente, lançamos um feixe de partículas contra a barreira do experimento da dupla fenda e coletamos os dados do primeiro milhão de partículas que passar. Quando fizermos um gráfico do número de partículas atingindo vários pontos de detecção, os dados formarão o padrão de interferência exibido anteriormente, e quando somarmos as fases associadas com todas as trajetórias possíveis para uma partícula indo do ponto A ao seu ponto de detecção B, encontraremos que a probabilidade que calculamos de cair em vários pontos concorda com esses dados.

Agora, suponha que repitamos o experimento, desta vez iluminando as fendas de modo que conheçamos um ponto intermediário C, pelo qual a partícula passou. (C é a posição ou de uma fenda, ou da outra) Esta é a denominada informação “qual-trajetória”, porque ela nos diz se cada partícula foi de A para a fenda 1 e depois para B, ou de A para a fenda 2 e depois para B. Como agora sabemos através de qual fenda cada partícula passou, as trajetórias da nossa soma para essa partícula só incluem as trajetórias que atravessaram a fenda 1, ou só trajetórias que atravessaram a fenda 2. A soma não mais incluirá tanto as trajetórias que passam pela fenda 1 como as que passam pela fenda 2. Já que Feynman explicou o padrão de interferência dizendo que as trajetórias que passam por uma fenda interferem naquelas que passam por outra, se ligarmos uma luz para determinar por que fenda as partículas passam, assim eliminando a outra opção, faremos desaparecer o padrão de interferência. De fato, quando o experimento é realizado, ligar uma luz muda os resultados do padrão de interferência, mostrado anteriormente na imagem jogador de fulerenos, para um padrão semelhante ao da imagem do jogador de duas fendas! Ademais, podemos variar o experimento empregando uma luz muito fraca de modo que nem todas as partículas interajam com ela. Nesse caso, seremos capazes de obter a informação qual-trajetória apenas para um subconjunto das partículas. Se então separarmos os dados sobre as detecções de partículas de acordo com o sucesso ou o insucesso no alcance de informação qual-trajetória, encontraremos que os dados pertencentes ao subconjunto de partículas para as quais não temos tal informação formarão um padrão de interferência, e os dados do subconjunto de partículas com essa informação não exibirão interferência.

Essa ideia possui implicações importantes para o nosso conceito de “passado”. Na teoria newtoniana, o passado existe como uma série definida de eventos. Se você vir aquele vaso que você comprou na Itália ano passado estilhaçado no chão e seu bebê ao lado dele com ar de inocente, pode reconstruir os eventos que culminaram na tragédia: os dedinhos deixaram escorregar o vaso, que caiu no chão e se espatifou em milhares de pedaços. De fato, dispondo de dados completos sobre o presente, as leis de Newton permitem calcular um quadro completo do passado. Isso é consistente com nossa compreensão intuitiva de que o mundo tem um passado definido, seja ele doloroso ou feliz. Pode não haver ninguém observando, mas podemos afirmar que o passado existe com a mesma certeza que teríamos se tivéssemos tirado uma série de fotografias dele. Mas não se pode dizer que um fulereno tenha um passado definido da fonte à tela. Podemos captar exatamente a localização de um fulereno, observando-o, mas, entre nossas observações, ele percorre todas as trajetórias. A física quântica nos diz que não importa quão detalhada seja nossa observação do presente, o passado (não observado), assim como o futuro, é indefinido e existe somente como um espectro de possibilidades. O universo, de acordo com a física quântica, não tem nem um passado, nem uma história única.

O fato de que o passado não tem uma forma definida implica que observações que fizermos de um sistema no presente afetam o seu passado. Isto é assinalado de um modo bastante dramático por um tipo de experimento concebido pelo físico John Wheeler, chamado experimento de escolha retardada. Esquematicamente, um experimento de escolha retardada é semelhante ao experimento da dupla fenda que acabamos de descrever, no qual temos a opção de observar a trajetória que a partícula percorre, exceto que, no experimento de escolha retardada, adia-se a decisão de observar ou não a trajetória até imediatamente antes de a partícula atingir a tela de detecção.

Experimentos de escolha retardada resultam em dados idênticos aos obtidos quando se decide coletar (ou não) a informação qual-trajetória pela observação das próprias fendas. Mas nesse caso a trajetória percorrida por cada partícula – isto é, o seu passado – é determinada bem depois de ela ter passado pelas fendas e presumivelmente “decidir” se passaria apenas por uma fenda, o que não produziria interferência, ou por ambas, o que a produziria.

Wheeler chegou a considerar uma versão cósmica do experimento, na qual as partículas envolvidas são fótons emitidos por poderosos quasares a bilhões de anos-luz de distância de nós. Tal luz poderia ser dividida em dois feixes e depois focalizada na Terra por uma lente gravitacional produzida por uma galáxia no meio do caminho. Embora o experimento esteja além da atual tecnologia, se pudéssemos coletar um número suficiente de fótons dessa luz, eles deveriam formar um padrão de interferência. Ainda assim, se colocássemos um dispositivo para medir a informação qual-trajetória um pouco antes do ponto de detecção, o padrão desapareceria. Nesse caso, a escolha de qual trajetória percorrer foi tomada bilhões de anos atrás, antes de a Terra ou mesmo o Sol terem sido formados. Mas, mesmo assim, com nossa observação no laboratório, estaremos afetando esta escolha.

Neste artigo, ilustramos a física quântica empregando o experimento da dupla fenda. No próximo, aplicaremos a formulação da mecânica quântica de Feynman ao universo como um todo. Veremos que o universo, como uma partícula, não tem apenas uma única história, mas todas as histórias possíveis, cada qual com a sua probabilidade; e que nossas observações do seu estado presente afetam seu passado e determinam suas diferentes histórias, do mesmo modo que as observações das partículas no experimento de dupla fenda afetam o passado dessas partículas. Essa análise mostrará como as leis naturais do nosso universo surgiram do big bang. Mas, antes de examinar como emergem essas leis, falarei no próximo artigo um pouco sobre o que elas são e sobre alguns dos mistérios que encerram.


1º Artigo: O Mistério do Ser
2º Artigo: O Domínio da Lei
3º Artigo: O Que é a Realidade?




Referência: Readaptação de The Grand Design de Leonard Mlodinow e Stephen Hawking

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